sábado, 25 de dezembro de 2010

A encarnação e o nascimento de Cristo

Publiquei em meu outro blog algumas considerações e citações sobre o maravilhoso sermão de Natal proferido por Charles Haddon Spurgeon em 1855, traduzido pelo pessoal do Projeto Spurgeon.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Lewis (1898-1963)

Fiquei sabendo agora há pouco, por intermédio do Allen Porto, que hoje se completam 47 anos da morte de C. S. Lewis, um dos maiores escritores cristãos do século XX. O espaço é curto demais para que eu explique o quanto devo a esse homem. Basta dizer que ele ampliou em grande medida minha compreensão da fé cristã e me ajudou a sair da armadilha da tentação materialista e racionalista que eu ainda enfrentava quando o conheci, em 2003.

Também é verdade que ele me fez algum mal, principalmente em decorrência de sua excessiva simpatia pelo catolicismo, que me contagiou. Embora eu não possa culpá-lo pela extensão que esse problema assumiu em minha trajetória, não posso deixar de atribuir à influência do irlandês a abertura de certas portas que deveriam ter permanecido bem fechadas. Pela graça de Deus, no entanto, o bem que esse autor me fez superou em muito o mal, tanto em intensidade quanto em duração. E, apesar de todos os equívocos de sua teologia, não alimento dúvidas quanto a ser ele um verdadeiro filho de Deus, que um dia verei no paraíso onde ele chegou há 47 anos.

Deixo aqui minha pequena homenagem a esse mestre aplicando-lhe aquela observação de Spurgeon segundo a qual um crente verdadeiro, por pior que seja quando teoriza sobre teologia, é sempre um reformado quando está diante de Deus. O homem que declarou, no final de O grande abismo, que "a doutrina da Predestinação [...] mostra (verazmente) que a realidade eterna não está aguardando um futuro em que venha a ser real, mas ao preço de anular a Liberdade, que é a verdade mais profunda entre as duas", também nos deixou as palavras a seguir sobre sua própria conversão, as quais considero o mais belo trecho de Surpreendido pela alegria:

"O leitor precisa imaginar-me sozinho naquele quarto em Magdalen, noite após noite, sentindo - sempre que minha mente se desviava por um instante que fosse do trabalho - a aproximação firme e implacável dAquele que eu resolutamente desejava não encontrar. Aquilo que eu tanto temera pairava afinal sobre mim. Cedi, enfim, no Trimestre da Trindade de 1929, admiti que Deus era Deus, ajoelhei-me e orei: talvez, naquela noite, o mais deprimido e relutante convertido de toda a Inglaterra. Não percebi então o que se me revela hoje a coisa mais ofuscante e óbvia: a humildade divina, que aceita um convertido mesmo em tais circunstâncias. O Filho Pródigo pelo menos caminhou para casa com as próprias pernas. Mas quem é que pode adorar devidamente esse Amor que abre os portões a um pródigo que é arrastado para dentro esperneando, lutando, ressentido e girando os olhos em torno, à procura de uma chance de fuga? As palavras "compelle intrare", obrigar a entrar, foram tão violentadas por homens impiedosos que chegamos a estremecer ao ouvi-las; mas, entendidas de forma correta, elas sondam a profundidade da misericórida divina. A dureza de Deus é mais bondosa que a suavidade dos homens, e Sua coerção é nossa libertação."

É isso. Lewis conheceu o mesmo Deus que eu, e Deus o usou para me ajudar a conhecê-Lo melhor. A quem honra, honra. E a Deus toda glória.

Adendo: além do ótimo post do Allen linkado no começo, leiam também a excelente palestra de John Piper sobre Lewis (ou ouçam, ou assistam, mas sem deixar de lado as notas de rodapé da versão transcrita, que são muito instrutivas). Quem não puder, leia pelo menos o resumo comentado que a Norma fez dela aqui.

sábado, 28 de agosto de 2010

Fundamentos de engenharia de petróleo

Li esse livro enquanto estudava para o concurso da Petrobras. A obra foi preparada por uma grande equipe de especialistas em petróleo e nas diversas fases do processo de sua extração. Não pretendo, por enquanto, fazer outros posts a respeito, mas isso nem de longe significa que eu não tenha apreciado a leitura. Ao contrário, fiquei impressionado ao constatar a trabalheira que dá identificar um local para cavar um poço. É um trabalho que toma vários anos, e cuja taxa de acerto é de apenas 47%. Muitos conhecimentos de física e geologia entram nessa fase. Além disso, fiquei impressionado também com a tecnologia envolvida na perfuração de poços, nos métodos de extração e em muitos detalhes do processo todo. Descobri ainda que um reservatório típico só permite a extração de cerca de 30% do petróleo nele contido, e que é na ampliação dessa capacidade que muitos especialistas veem um futuro promissor para o ramo. Não posso dizer que entendi o livro todo, mas o contato com todo esse ramo da engenharia e das ciências aplicadas me foi muito agradável. Além do mais, me fez lembrar de um desejo que tenho há quase dez anos: o de, um dia, estudar geologia bem mais profundamente.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O grande jogo XII

Falei no post anterior dos muitos aspectos positivos do quinto capítulo do livro. No entanto, há também alguns probleminhas não desprezíveis. Magnoli acha que havia no pensamento de Marx um elemento democrático com o qual o comunismo soviético só veio a romper sob Stálin. Repete as calúnias de sempre contra os conservadores americanos (imperialismo, Guantánamo, etc.). Acha que o conteúdo do "documentário" Fahrenheit é conservador. Pensa que o nacionalismo decorrente do antiamericanismo da América Latina é um sintoma da "dissolução ideológica" da esquerda. Sustenta, embora de um modo algo particular, a velha mentira stalinista de que fascismo e comunismo são coisas extremamente diferentes entre si. Acha que o MST não está promovendo nenhuma revolução socialista, e sim o contrário: tem sido usado para facilitar a "modernização acelerada, conservadora e excludente" do agronegócio brasileiro.

Além disso, Magnoli perdeu a oportunidade de tirar a devida lição de certos fatos mencionados por ele mesmo. Por exemplo, que, ao se manifestar contra os crimes da ditadura cubana, Saramago estava com menos pena dos fuzilados que de si próprio. Ou que a mera existência do Fórum Social Mundial demonstra que os melhores amigos da esquerda do Terceiro Mundo (como Chávez e o PT) são as ONGs ligadas à ONU - e, por conseguinte, os bilionários que as financiam. E que isso basta para derrubar o mito de que a esquerda representa os interesses dos pobres contra os dos ricos. Magnoli é um esquerdista excepcionalmente bem dotado intelectualmente, mas ainda é esquerdista demais para entender certas coisas.

domingo, 22 de agosto de 2010

O que vem por aí

Os livros que têm sido comentados por mim neste blog foram lidos há vários meses. Portanto, os comentários estão atrasados. Neste post apenas listarei alguns livros que li recentemente, ou que ainda estou lendo, e que não apareceram ainda neste espaço. Assim os leitores poderão fazer uma previsão do quanto o conteúdo do blog lhes parecerá interessante nos próximos tempos.

1. Levítico: introdução e comentário, do teólogo canadense R. K. Harrison. Ganhei esse livro do meu pai há uns dois anos, mas só agora o estou lendo. A leitura do comentário de Calvino a Hebreus me incentivou a isso.

2. O pensamento econômico e social de Calvino, do teólogo suíço André Biéler: excelente obra que ganhei da Norma no Natal passado.

3. A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna, do teólogo americano R. K. McGregor Wright. Ganhei o livro em janeiro deste ano na promoção do irmão Jorge Fernandes e seus amigos. Trata do tema da soberania divina e da autonomia humana, em diversos níveis.

4. Produção de mudas e manejo fitossanitário dos citros: coletânea que nosso laboratório ganhou de presente de um colaborador. Li-o para enriquecer meus conhecimentos sobre doenças e pragas em citros, assunto diretamente vinculado ao tema de minha dissertação de mestrado.

5. Pedro, Estêvão, Tiago e João: estudos do cristianismo não-paulino, do teólogo escocês F. F. Bruce. Livro que dei de presente ao meu pai em seu último aniversário, e que ele me emprestou depois de ter lido.

6. Para compreender o islã: originalidade e universalidade da religião, do metafísico sufi suíço Frithjof Schuon. Esse livro trata da religião islâmica em comparação com outras tradições, sempre de um ponto de vista perenialista e esotérico (no sentido guénoniano da palavra). Comprei-o num sebo local há dois ou três anos, mas só agora me animei a lê-lo.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O grande jogo XI

O quinto capítulo, A esquerda que fuzila, é certamente o melhor de toda a primeira parte do livro. Ele critica o totalitarismo da esquerda de inúmeras formas. Denuncia corretamente a farsa da desestalinização empreendida pelo comunismo soviético, apontando a hipocrisia de Kruschev, do Partido e de seus muitos colaboradores no Ocidente, bem como a falsidade dos dois pilares fundamentais da reinterpretação pós-stalinista da história: que a URSS foi responsável pela melhoria das condições de vida no Ocidente e pela salvação da humanidade contra o perigo do nazismo. Identifica aspectos importantes da semelhança ideológica entre o PT e os partidos e líderes comunistas totalitários dos tempos da Guerra Fria, semelhança essa que se manifestou de vários modos, por exemplo, por ocasião da crise do mensalão. Critica a omissão do governo Lula e outros partidos de esquerda brasileiros diante dos crimes políticos da ditadura castrista - o que, aliás, continua acontecendo até hoje. Denuncia a exultação imoral da esquerda acadêmica brasileira por ocasião dos ataques do 11 de setembro e, de modo mais amplo, a simpatia da esquerda mundial pelo terrorismo islâmico. Denuncia também o antiamericanismo que se apossou de maneira generalizada da esquerda no mundo todo, impedindo-a de perceber a força inigualável da democracia americana. Trata com o devido desprezo o trabalho de Michael Moore, o mais mentiroso cabo eleitoral do Partido Democrata. Ataca, de modo geral, as teorias conspiracionistas sobre o 11 de setembro, identificando a razão fundamental de sua plausibilidade aos olhos de muitos: a convicção autenticamente esquerdista de que só amantes da liberdade podem ser verdadeiros inimigos da "pátria do capitalismo". O trecho de que mais gostei no capítulo todo é este aqui:

"Eles eram americanos, foram rebaixados a norte-americanos e hoje não passam de estadunidenses. Os arautos do antiamericanismo querem extirpar a América do nome dos Estados Unidos, reduzindo-os à descrição anódina de seu sistema federal. A privação do nome próprio equivale a uma eliminação simbólica do inimigo e funciona como prelúdio ideológico do extermínio prático, que permanece como ideal."

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

The consolation of philosophy VII

A parte mais interessante do Livro IV é introduzida através de uma pergunta de Boécio à Filosofia sobre o discernimento dos propósitos divinos na sorte dos homens. Para responder a essa pergunta, a Filosofia disserta sobre o tema da soberania divina, embora sem usar esse termo. Gostei dessa explicação, por não abrir mão da soberania divina, embora faça distinções entre aquilo que se encontra sob ela. Nesse trecho, Boécio distingue a Providência divina do Destino, concedendo à primeira um alcance mais vasto. Apesar da linguagem distante da que empregamos hoje, noto um acordo entre as posições de Boécio e as minhas próprias em muitos pontos, embora não em todos. Especialmente se eu estiver correto em minha compreensão da Providência como correspondendo àquilo que a teologia reformada chama de "decretos divinos", e do Destino como se referindo às forças impessoais da natureza.

"Tua pergunta me chama ao maior de todos esses assuntos, e uma resposta completa a ela é quase impossível. Pois ela é desse tipo: se uma dúvida é estirpada, inumeráveis outras surgem, como as cabeças da Hidra; e não pode haver limite a menos que um homem as refreie pelo mais rápido fogo da mente. Pois aqui jazem as questões do caráter direto da Providência, do curso do Destino, de acidentes que não podem ser previstos, do conhecimento, da divina predestinação e da liberdade de julgamento. Podes julgar por ti mesmo o peso dessas questões. Mas visto que é parte de teu tratamento conhecer as respostas a algumas delas, tentarei tirar algum proveito daí, embora estejamos restritos a um curto espaço de tempo. [...] O engendramento de todas as coisas, o desenrolar inteiro de todas as naturezas mutáveis e todo movimento e progresso no mundo obtêm sua causa, sua ordem e sua forma da atribuição da imutável mente de Deus, que estabelece várias restrições sobre todas as ações a partir da calma fortaleza de sua própria direção. Tais restrições são chamadas de Providência quando se pode ver que jazem na própria simplicidade do entendimento divino; mas foram chamadas de Destino nos tempos antigos, quando eram vistas com referência aos objetos que elas moviam ou organizavam. Será facilmente entendido que esses dois são muito diferentes se a mente examinar a força de cada um. Pois a Providência é a própria razão divina que organiza todas as coisas e repousa com o supremo ordenador de tudo; enquanto o Destino é aquela ordenação que é uma parte de todas as coisas mutáveis por meio das quais a Providência mantém todas as coisas em sua devida ordem. A Providência abrange todas as coisas igualmente, por mais diferentes que possam ser, mesmo as infinitas: quando lhes são atribuídos seus devidos lugares, formas e tempos, o Destino as põe em movimento ordenado, de modo que esse desenvolvimento da ordem temporal, unificado na inteligência da mente de Deus, é a Providência. O funcionamento desse desenvolvimento unificado no tempo é chamado Destino.

São diferentes, mas um se apóia no outro. Pois essa ordem, que é governada pelo Destino, emana da direção da Providência. Assim como, quando um artesão percebe em sua mente a forma do objeto que pretende fazer, ele coloca em ação sua força de trabalho e traz à existência, na ordem do tempo, aquilo que tinha visto diretamente e que estava prontamente presente em sua mente. Assim, pela Providência Deus dispõe inalteravelmente de tudo o que será feito, cada coisa por si mesma; enquanto essas mesmas coisas que a Providência organizou são moldadas pelo Destino de muitos modos no tempo. Portanto, quer o Destino trabalhe com a ajuda dos espíritos divinos que servem a Providência, quer trabalhe com a ajuda da alma, ou de toda a natureza, ou dos movimentos das estrelas no céu, ou dos poderes dos anjos, ou das várias habilidades de outros espíritos, quer o curso do Destino esteja unido a algum desses ou a todos eles, uma coisa é certa, a saber, que a Providência é o único poder imutável direto que dá forma a todas as coisas que devem acontecer, enquanto o Destino é o laço mutável, a ordem temporal dessas coisas que são preparadas para acontecer pela direta disposição de Deus.


Daí se segue que tudo o que está sujeito ao Destino está também sujeito à Providência, à qual o próprio Destino está sujeito. Mas há coisas que embora estejam sob a Providência, estão acima do curso do Destino. Essas coisas são aquelas inamovivelmente estabelecidas o mais perto possível da divindade primária, e ali se encontram além do curso do movimento do Destino. Como no caso das esferas que se movem girando em torno do mesmo eixo, aquela que está mais perto do centro se aproxima mais do movimento simples do centro e é ela mesma, por assim dizer, um eixo em torno do qual se revolvem aquelas que estão fora dela. [...] Do mesmo modo, aquilo que mais se afasta da inteligência primária está mais preso pelos laços do Destino, e quanto mais perto chega do eixo de tudo, mais livre está do Destino. Mas aquilo que se apega sem movimento ao firme intelecto de cima sobrepuja de todo o elo do destino.


Portanto, como o raciocínio está para o entendimento, como aquilo que se torna está para aquilo que é, como o tempo está para a eternidade, como a circunferência está para o centro, assim está o curso mutável do Destino para a direção inamovível da Providência. Esse curso do Destino move os céus e as estrelas, modera os primeiros princípios em suas revoluções e altera suas formas mediante permutações equilibradas. O mesmo curso renova todas as coisas que nascem e definham mediante a prole e a semente. Ele compele também as ações e fortunas dos homens mediante uma inquebrável cadeia de causas, e essas causas devem ser imutáveis, visto que procedem dos primórdios de uma Providência imutável. Assim é o mundo governado pela melhor direção, que repousa na inteligência de Deus, estende uma ordem de causas que não pode se desviar. Essa ordem, por sua imutabilidade, refreia as coisas mutáveis, que poderiam de outro modo correr a esmo de um lado a outro."

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O grande jogo X

O quarto capítulo do livro trata de Israel e da questão Palestina, que é um assunto sobre o qual não estou muito bem informado. Apesar disso, há dois pontos que considero interessante comentar. Um deles aparece já no segundo parágrafo, quando Magnoli comenta o "terror de Estado" praticado por Israel, apontando que ele "precisa de uma lógica política, enquanto aos 'homens-bomba' basta o desespero ou a fé cega". Com isso, o autor reforça o que já dissera no capítulo anterior, isto é, que o terrorismo é geralmente uma atitude desesperada de facções oprimidas, e cuja prática conduz não só ao suicídio dos homens-bomba, mas também ao suicídio político da organização e da causa por ela defendida: "Quase sempre o terror serve aos fins daqueles que declara combater."

Isso não é verdade, porém, e Magnoli poderia constatar a falsidade do que diz lendo seus próprios artigos. No mesmo texto, ele afirma que a vitória sobre a Al Qaeda passa necessariamente pela desocupação americana do Afeganistão e do Iraque. Segundo ele, isso prejudicaria a organização terrorista ao privá-la dos pretextos de que se serve para obter apoio e estima no mundo islâmico. Ora, mas a retirada americana no Oriente Médio é justamente o que quer a Al Qaeda. Em essência, Magnoli defende que a vontade de Osama bin Laden deve ser obedecida. Mas o geógrafo apresenta essa solução como se fosse uma arma de combate contra a organização terrorista, o que dá ensejo à sua mania onipresente de culpar o governo americano pelos males causados por seus inimigos. Agora imaginemos alguns milhares de Magnolis com ideias igualmente "brilhantes" espalhados pelo mundo, e teremos uma explicação plenamente satisfatória para o modo de agir dos terroristas. Os ataques suicidas não são um recurso desesperado dos fracos, ao contrário do que Magnoli quer nos fazer crer. São, isso sim, um recurso muito bem planejado, e que atinge seus fins a despeito da inferioridade militar, graças à colaboração de muitos Magnolis espalhados pelos órgãos de imprensa no mundo todo, órgãos que são usados como instrumentos de pressão política justamente contra os Estados que se empenham em combater os terroristas e as causas por eles defendidas.

O princípio é o mesmo que o comunismo empregou com sucesso na Guerra do Vietnã: usar a imprensa dos países livres (no caso, os EUA) como instrumento de campanha política, isto é, como um megafone destinado a amplificar imensamente qualquer ruído de guerra que se pudesse ouvir nas selvas do sudeste da Ásia. É algo parecido com o que a imprensa esquerdista fez no caso do Afeganistão e do Iraque. O princípio é: não adianta, não vamos conseguir vencê-los; a única solução é dar-lhes o que desejam; eles ficarão felizes e não nos importunarão mais. E assim, de concessão em concessão, os terroristas e seus aliados vão dominando o mundo.

Uma aplicação muito bem sucedida da mesma estratégia midiática, resultante da aliança entre a esquerda ocidental e o terrorismo islâmico, ocorreu por ocasião do atentado a Madri em março de 2004. Magnoli colabora mais uma vez, divulgando a versão oficial dos socialistas do mundo todo: que o governo da Espanha, conservador, mentiu ao povo sobre a autoria do atentado para tentar justificar seu apoio aos americanos no Iraque, e o povo se vingou elegendo a oposição socialista. Porém, se alguém chegou a saber que o governo divulgou uma versão falsa dos fatos, foi apenas porque o próprio governo divulgou a informação correta no dia seguinte, corretamente atribuindo o atentado à Al Qaeda, tão logo as evidências passaram a apontar nessa direção. Dessa forma, perderam os conservadores espanhóis e americanos, e ganharam os socialistas espanhóis e a própria Al Qaeda, pois o novo governo tratou de retirar imediatamente o apoio à ocupação do Iraque. É impossível não ver nisso uma ação conjunta de socialistas e terroristas. Mas Magnoli não apenas faz sua parte para evitar que chegue aos ouvidos do público brasileiro a verdade sobre esse fato específico, mas também espalha por todo canto a tese de que os grandes apoiadores do terrorismo islâmico sempre foram os americanos.

O segundo ponto a comentar sobre o capítulo em questão diz respeito justamente a essa aliança entre socialismo e islamismo. Magnoli atribui a origem do antissemitismo ao catolicismo medieval (o que me parece correto), passando daí ao nazismo e ao fascismo graças ao seu nacionalismo (pois o judeu seria sempre visto como estrangeiro) e só daí teria passado à esquerda via Stálin, graças à suposta nacionalização do socialismo soviético empreendida por esse célebre genocida. Esse é, porém, apenas mais um mito da esquerda. Magnoli deixa escapar que, paralelamente à imagem do "judeu sem pátria", surgiu também a do "judeu usurário". Ele só não menciona que ninguém fez mais pela promoção dessa última que os anarquistas e comunistas do século XIX, que se tornaram antissemitas por terem vislumbrado alguma relação entre os judeus e o capitalismo. O que não era difícil, dada a bem conhecida prosperidade que prevalece entre os membros desse povo. Foi a esquerda revolucionária que transmitiu esse "valor" ao que se convencionou chamar de "extrema-direita", e não o contrário. O socialismo já era amplamente antissemita quando o fascismo e o nazismo ainda nem sonhavam em existir.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

The consolation of philosophy VI

Após a denúncia da falsa felicidade proporcionada pelas coisas deste mundo, a Filosofia explica a Boécio onde está oculta a verdadeira felicidade. A resposta pode ser vislumbrada na bela oração abaixo transcrita. O trecho é interessante também por reunir uma porção de elementos da física e da metafísica antiga, derivados, segundo me parece, sobretudo de Platão e Aristóteles.

"Ó Tu que governas o universo com lei eterna, fundador tanto da terra quanto do céu, que convidaste o tempo a se apresentar, saindo da Eternidade, Tu que estás firme para sempre, embora dês movimento a tudo. Não houve causas externas a Ti que pudessem impelir-Te a criar esta massa de matéria mutável, mas dentro de Ti mesmo existe a própria ideia do bem perfeito, que a nada inveja. Pois de quê poderia ele ter inveja? Fazes que todas as coisas sigam aquele elevado padrão. Em beleza perfeita moves em Tua mente um mundo de beleza, fazendo tudo à imagem e semelhança dele, e chamando o todo perfeito a completar suas perfeitas funções. Unes todos os primeiros princípios da natureza por ordens perfeitas como as ordens numéricas, de modo que cada um possa ser equilibrado com seu oposto: frio com calor e secura com umidade; de modo que o fogo não pode ascender rápido demais por ser muito puro, nem pode o peso da terra sólida arrastá-lo para baixo e esmagá-lo. Fazes a alma como um terceiro entre a mente e os corpos materiais; a estes a alma dá vida e movimento, pois Tu a espalhas entre os membros do universo, que agora funcionam em harmonia. Assim é a alma dividida enquanto toma seu curso, fazendo dois círculos, como um fio amarrado em torno do mundo. Por conseguinte, ela retorna sobre si mesma e passa em volta da mais baixa mente terrena; e, de modo semelhante, dá movimento aos céus para que completem seu curso. Tu és o que conduz adiante com tal inspiração essas almas e vidas inferiores. Preenches esses vasos fracos com almas grandiosas, e as envias a todas as partes do céu e da terra, e por Tua amável lei as conduzes de volta a Ti mesmo e as levas a buscarem, como o fogo, ascender a Ti novamente. Concede então, ó Pai, que nossas mentes possam ascender a Teu trono de majestade; concede-nos que alcancemos essa fonte do bem. Concede que possamos assim encontrar luz, de modo que possamos firmar em Ti olhos desvendados; tira deles as pesadas nuvens deste mundo material. Brilha sobre nós em Tua própria e verdadeira glória. És o brilhante e sereno repouso de todos os Teus filhos, que Te adoram. Ver-Te claramente é o termo de nossa meta. És nosso início, nosso progresso, nosso guia, nosso caminho, nosso fim."

sábado, 7 de agosto de 2010

O grande jogo IX

Como se pode ver pelos posts anteriores, há muitos erros nas análises políticas de Magnoli, inclusive alguns erros crassos. Não quero, porém, dar a impressão de que não aprendi nada com sua leitura. A despeito de todas as distorções motivadas pela ideologia, dos fatos ignorados e das mentiras veiculadas, o autor possui conhecimentos vastos e frequentemente propõe interpretações interessantes. Se não comento esses aspectos positivos por aqui, é porque eles se difundem muito bem ao longo dos textos, de modo que, para fazer-lhes justiça, seria necessário comentar quase todas as páginas do livro.

Um aspecto do livro que julguei muito positivo é a preocupação constante com a análise dos interesses nacionais. A fim de evitar as simplificações indevidas de Morgenthau, para quem os Estados eram os únicos agentes políticos, alguns analistas políticos conservadores parecem cair no erro oposto, desprezando os interesses nacionais a fim de fazer justiça aos elementos ideológicos, religiosos, partidários e outros tantos que não se identificam a nação alguma. Os textos de Magnoli fazem parte de um conjunto de leituras que me levam à revalorização da importância desse aspecto da luta política - embora, é claro, mantendo-o em sua proporção devida.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Um mundo com significado X

O nono capítulo, intitulado A restauração do organismo vivo, traz algumas informações interessantes sobre o estado atual dos debates internos da biologia. Não é de hoje que sei que, no meio científico, Richard Dawkins e seus discípulos estão longe de contar com a aprovação unânime que a imprensa normalmente lhes atribui. Na verdade, essa escola tem muitos inimigos não só entre criacionistas e religiosos em geral, mas também nos próprios círculos materialistas. Mas meu propósito aqui é falar apenas dos adversários que combatem suas ideias no plano estritamente científico. A teoria do "gene egoísta", com sua subjacente adesão à teoria que estabelece o gene como unidade de seleção, foi amplamente contestada, por exemplo, pelo paleontólogo Stephen Jay Gould, de Harvard, defensor da teoria clássica que atribui esse papel aos organismos, e por outros que o atribuíam às populações ou espécies inteiras. Também são dignos de nota Lynn Margulis e seu neolamarckismo, bem como Stuart Kauffman, que tem uma teoria sobre as propriedades auto-organizadoras da matéria. Todas essas são pessoas de elevada posição no meio científico, e cujas simpatias pelo criacionismo ou pelo design inteligente são manifestamente inexistentes. É o caso de nos perguntarmos como é que Dawkins conseguiu obter tamanha aparência de respeitabilidade acadêmica, quando a comunidade dos biólogos está cheia de gente que o considera, na melhor das hipóteses, um sujeito cheio de ideias erradas na cabeça.

Para mim, a grande novidade do capítulo 9 está na descoberta de que Kauffman não é uma voz isolada em defesa de sua teoria, que critica vários aspectos importantes do neodarwinismo que todos aprendemos na escola. Wilker e Witt fornecem informações sobre toda uma escola de biólogos que vai na mesma direção, recusando-se a conceder ao código genético o papel de monarca absolutista que Dawkins lhes atribui. Essa escola, que os autores chamam de "estruturalismo biológico", defende uma abordagem menos reducionista, ao considerar os genes como partes importantes, mas não mais que a totalidade das células e dos organismos que fornecem o contexto para sua atuação. Parece uma ideia interessante. E, pensando bem, creio já ter ouvido rumores dela em algum lugar. Os autores não falam disso, mas lembro-me de ter lido que o sequenciamento do genoma humano não forneceu o "segredo da vida" ou outras bobagens alardeadas pela mídia, justamente porque foi constatado que nem toda a informação necessária para tanto estava ali codificada.

sábado, 31 de julho de 2010

O grande jogo VIII

Eu mesmo tenho uma porção de críticas à administração Bush e ao neoconservadorismo americano, ou mesmo à direita americana em geral. Contudo, não posso de modo algum endossar as posições de Magnoli a respeito do tema. Tomemos como exemplo a questão da China: os neocons temem a consolidação da China como potência econômica e militar que, por ter uma ideologia oposta aos valores democráticos, poderá causar sérios problemas no futuro. O geógrafo, porém, informa que "a 'obsessão chinesa' dos neoconservadores não tem sentido", pois o gigante asiático tem ajudado a preservar a estabilidade geopolítica da Ásia; além disso, o crescimento econômico chinês "cumpre a função crucial de financiar o déficit externo dos Estados Unidos". Por trás desse último argumento talvez repouse a muito discutível opinião de que déficits são coisas ruins. Com ou sem isso, porém, o recado de Magnoli é bem claro: a China morre de amores pelos EUA e os interesses de ambos combinam muito bem. Se o casamento não der certo, a culpa será toda dos americanos; ou, mais precisamente, dos "neoconservadores". De um jeito ou de outro, o autor acaba sempre voltando a esse ponto, que chega a ser um pressuposto fundamental de todas as suas análises da política internacional: da China à ONU, passando pelo mundo islâmico, todo mundo quer ser amigo dos Estados Unidos. Se os conservadores americanos não fossem tão truculentos, arrogantes e desconfiados, o mundo estaria caminhando muito bem. Logo, são eles os culpados de tudo o que acontece de errado no mundo, incluindo-se aí o que seus inimigos fazem contra eles. Eles são culpados pelas alianças estratégicas entre a China e a Rússia; pelo ódio que o mundo islâmico devota ao Ocidente; pela manifesta incapacidade da ONU para cumprir o que promete aos países-membros; e muitos et ceteras.

No entanto, Magnoli de modo algum se considera antiamericano. Em meio às dezenas de críticas (várias delas puramente caluniosas) aos EUA, ele chega até a dizer algumas palavras contra o antiamericanismo. Num ambiente dominado pelo esquerdismo, como a imprensa brasileira, não é preciso muita coisa para se livrar da pecha de antiamericano: basta dar algumas voltas a mais antes de fazer as mesmas condenações que todo mundo faz. É assim que faz Magnoli, sem fugir às contradições mais corriqueiras dos "antiimperialistas" de plantão. Num certo momento, o autor se queixa de que os neoconservadores "orientam-se por imperativos ideológicos e movem-se ao sabor das projeções abstratas", cavando a própria cova ao deixar de lado os ditames da política prática. Cinco páginas adiante, o mesmo autor os acusa de usar o discurso ideológico para ocultar suas verdadeiras motivações, que brotam do interesse nacional. É assim que ele denuncia que a direita americana não é defensora tão ferrenha da democracia quanto se supõe, já que "admitia uma cuidadosa seleção das 'tiranias' a derrubar". Como se os EUA tivessem poder suficiente para derrubar todas as tiranias do mundo. E como se devêssemos esperar um Magnoli felicíssimo caso isso acontecesse. A julgar pelo tamanho de seu protesto contra a derrubada de Saddam Hussein, fica-se com a impressão de que ele gosta mais da tirania mesmo.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

The consolation of philosophy V

A coesão e continuidade do texto de Boécio são tamanhas que selecionar trechos para transcrição é tarefa difícil. A despeito disso, creio poder expor, por meio de citações, a essência da mensagem contida no Livro III. Neste post, transcrevo uma bela explicação de como o coração humano é desviado para as coisas deste mundo, sendo incapaz de discernir corretamente a fonte de sua própria felicidade. Em linguagem teológica, trata-se do velho processo pecado - idolatria - condenação. O próximo post trará o complemento necessário a essa situação.

"O problema das muitas e variadas metas dos homens mortais lhes traz muita preocupação, e daqui eles prosseguem por diferentes caminhos, mas lutam para atingir um único fim, que é a felicidade. E esse bem é aquele que, se algum homem o alcança, não deseja nada mais. Essa é a mais elevada de todas as boas coisas, e inclui em si todas elas; se algum bem lhe falta, ela não pode ser o bem supremo, pois então foi deixado de fora algo que pode ser desejado. Daí se segue que a felicidade é um estado tornado perfeito pela união de todas as coisas boas. Todos os homens procuram atingir esse fim, como eu disse, embora por diferentes caminhos. Foi implantado pela natureza nas mentes dos homens um desejo pelo verdadeiro bem; mas o erro os afasta em direção a falsos bens e por caminhos errados.

Alguns homens creem que o bem supremo é não sentir falta de nada, e assim sofrem para conseguir riqueza abundante. Outros consideram que o bem verdadeiro é ser o mais digno de admiração, e assim lutam para conseguir lugares de honra e ser mantidos ali por seus concidadãos. Alguns decidem que o bem supremo reside no poder supremo, e assim desejam reinar ou tentam conseguir o favor dos que reinam. Outros pensam que o renome é o maior bem, e portanto se apressam para tornar seu nome famoso pelas artes da paz ou da guerra. Mas a maior parte mede o fruto do bem pelo prazer e pelo desfrute, e esses acham que o homem mais fez é o que se entrega ao prazer.


Além desses, há os que confundem as metas e as causas dessas boas coisas; como aqueles que desejam riquezas para obter poder ou prazer, ou aqueles que procuram poder para obter dinheiro ou celebridade. Nessas coisas, então, e em outras como elas, jaz a meta das ações e orações dos homens, tais como renome e popularidade, que parecem conceder alguma fama, ou esposa e filhos, que são buscados pelo prazer que proporcionam. Por outro lado, o bem dos amigos, que é o mais honorável e santo de todos, não reside no reino da Fortuna, e sim no da Virtude. Todos os outros são adotados pela obtenção de poder ou desfrute. [...]


Não há dúvida, então, de que essas estradas para a felicidade não são estradas e não podem levar homem algum ao fim a que prometem levá-lo. Eu gostaria de mostrar-te brevemente a que grandes males são atadas. Queres amontoar dinheiro? Precisarás tirá-lo de seu dono. Queres parecer brilhante pela glória de grandes honras? Deves ajoelhar diante de seu distribuidor e, em teu desejo de sobrepujar outros homens em honra, deves rebaixar-te, pondo de lado todo orgulho. Anseias por poder? Estarás sujeito aos ardis de todos aqueles sobre os quais tens poder, estarás à mercê de muitos perigos. Procuras fama? Serás arrastado de um lado a outro por caminhos ásperos e perderás toda a liberdade da segurança. Queres gastar a vida em prazeres? Quem não desprezaria e rejeitaria tal servidão a algo tão vil e frágil quanto teu próprio corpo? Quão insignificantes são todas as metas daqueles que colocam diante de si os prazeres do corpo! Quão incerta é a posse deles! Poderás sobrepujar em tamanho o elefante? Tomarás, na força, a liderança do touro ou, na velocidade, a do tigre? Olha para a vastidão dos céus, a força com que permanece de pé, a rapidez com que se move, e cessa por um instante de te admirar por coisas pequenas."

domingo, 25 de julho de 2010

O grande jogo VII

Com relação à invasão americana do Iraque, Magnoli é tão antiamericano quanto quase todo mundo neste país. Seus principais argumentos são dois. Primeiro, ele condena a "unilateralidade" da administração Bush, que não deu bola às recriminações da ONU. Como se essa instituição, com suas ditaduras na Comissão de Direitos Humanos e outros absurdos, devesse ser levada a sério como árbitro entre Bush e Saddam. E como se a ONU já fosse o governo mundial que sempre sonhou em ser. O problema, na verdade, é que, a fim de que a ONU pudesse levar a efeito sua função pacificadora no mundo, os Estados-membros transferiram a ela parte de suas próprias prerrogativas quanto à defesa de seus interesses nacionais contra os abusos de seus inimigos. Mas, se a ONU não tem o poder (nem o desejo, aliás) necessário para cumprir sua parte, que direito tem ela de reclamar se um de seus membros decide resolver o problema por si mesmo?

O segundo argumento de Magnoli é que a administração Bush teria inventado uma justificação para seu ato com base no conceito de "guerra preventiva", pelo qual qualquer governo pode ser destituído com base na mera possibilidade de vir a causar problemas algum dia. Trata-se, é claro, de uma caricatura barata da verdadeira justificativa oferecida para a guerra: num mundo pós-11 de setembro, manter no Oriente Médio um ditador genocida que não cumpre os acordos de inspeção contra armas de destruição em massa era, de fato, uma ameaça à segurança nacional americana. Saddam Hussein não era de modo algum um sujeito inofensivo contra quem foram levantadas suspeitas injustificadas. (Michael Moore também espalhou mentiras dessa ordem em seu Fahrenheit: segundo ele, o Iraque "nunca tinha assassinado um único cidadão americano".) Além de ter expulsado os inspetores da ONU sob os olhos impassíveis de Bill Clinton, Saddam também deu abrigo a terroristas procurados por fazer atentados contra americanos, financiou entidades terroristas que mataram americanos em Israel e empreendeu uma fracassada tentativa de assassinato contra o presidente americano em 1992. Finalmente, Magnoli não menciona as inúmeras conexões entre o governo iraquiano e a Al Qaeda.

Magnoli quer nos fazer crer que não havia justificativas reais para a destituição de Saddam Hussein, e que o governo Bush armou um complô apenas para garantir os interesses geopolíticos e econômicos americanos no Oriente Médio. Não nego, é claro, que houvesse interesses dessa ordem; aliás, os conservadores americanos que apoiaram a guerra também não o negaram jamais. Por si mesmo, esse fato demonstra que a acusação de hipocrisia lançada por Magnoli e por meio mundo não se sustenta de modo algum.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Um mundo com significado IX

O oitavo capítulo, intitulado O ressurgimento da célula viva, transporta a discussão para o plano biológico, combatendo o reducionismo que busca interpretar os seres vivos e suas células em função apenas de sua constituição química. É nesse contexto que Wilker e Witt explicam e defendem a abordagem a ser adotada ao longo do capítulo:

"Existem duas importantes formas de demonstrar que alguma crença ou teoria quanto à natureza é errônea. Poderíamos questionar suas pressuposições fundamentais, por assim dizer, pela força da filosofia pura. O problema com a filosofia, infelizmente, é que ela é uma coisa humana e, assim, há bastante espaço para erros e discordâncias e ainda mais espaço para nos escondermos em casas abstratas de nossa construção. Os antigos filósofos gregos discutiam quantas e quais seriam as substâncias fundamentais da natureza. Um argumento persuasivo erigido contra outro argumento persuasivo. Tudo seria bastante lógico, mas nunca especialmente empírico, pois a natureza ainda não teria muito o que dizer. Outro modo de remover o erro é simplesmente permitir que ele corra a pleno vapor e procurar sua contradição na própria natureza."

Fiquei algo impressionado ao ver esses dois inimigos declarados do materialismo cientificista moderno endossando dessa forma a crença positivista que limita toda discussão racional ao que pode ser apreendido pelos sentidos, considerando puramente subjetivo ou mesmo sem sentido tudo quanto pretenda ir além disso. Ao declarar que a filosofia é "uma coisa humana" que dá espaço a erros, discordâncias e abstrações, os autores deixam implícito que a ciência experimental é uma coisa divina cujos meios de operação são livres de toda abstração e cujas conclusões são infalíveis e inquestionáveis. Trata-se de um absurdo evidente demais para que eu me empenhe em refutá-lo neste post.

É claro que é perfeitamente lícito, para fins de argumentação, restringir a discussão a um campo específico, como o das ciências naturais ou alguma de suas muitas ramificações. Seria, pois, suficiente que os autores procedessem dessa forma, argumentando com rigor a partir dos dados empíricos disponíveis e denunciando com veemência seus opositores quando estes, contrariando suas próprias teses epistemológicas, fogem da argumentação científica para as desculpas ideológicas e pseudocientíficas de sempre. Nesse caso, tratar-se-ia de uma atitude condescendente com a obtusidade do adversário, adotada com objetivos didáticos. Não foi, porém, o que fizeram os autores, que começaram por dar razão aos adversários nesse ponto fundamental, e acabaram produzindo uma crítica que padece do mesmo defeito que denuncia: a incongruência de ir além do dado empírico e, ao mesmo tempo, negar que esse seja um procedimento válido.

A propósito, tendo eu já lido uma porção de críticas e defesas da teoria abiogênica sobre a origem da vida em suas inúmeras variações, estou em condições de afirmar que a exposição de Wilker e Witt sobre o tema deixa a desejar do ponto de vista do rigor científico e da profundidade com que os vários aspectos do problema são abordados. Essa é uma prova adicional de que adotar os vícios intelectuais do adversário não é uma boa maneira de demonstrar seus erros. Não obstante, o capítulo é interessante por algumas das informações transmitidas, bem como pelas referências bibliográficas indicadas ao leitor interessado em se aprofundar no tema.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O grande jogo VI

Publiquei no outro blog um post contendo minhas considerações sobre o posicionamento de Demétrio Magnoli acerca da relação entre o Ocidente e o Islam.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

The consolation of philosophy IV

Um benefício colateral da leitura desse belo livro foi o incremento da evidência de que o homem medieval não era ignorante sobre a posição do homem no universo. A opinião contrária é apenas um mito iluminista. E emprego a palavra "mito" no sentido pejorativo.

"Então eu disse: 'Sabes que a vanglória deste mundo teve bem pouca influência sobre mim; contudo, desejei os meios para dispor as coisas de tal forma que a virtude não envelhecesse em silêncio'. 'Sim', disse ela, 'mas há uma coisa que pode atrair as mentes, a qual, embora seja excelente por natureza, não é levada pela perfeição aos limites extremos da virtude; tal coisa é o amor pela fama e pela reputação, por merecer o bem do próprio país. Pensa, então, sobre isso, e vê que não é senão uma coisa fútil e sem peso. Conforme aprendeste das exposições dos astrônomos, a circunferência da terra inteira não é senão um ponto, se comparada ao tamanho dos céus. Ou seja, se comparas a terra ao círculo do universo, ela deve ser reconhecida como desprovida de qualquer tamanho. E nessa minúscula porção do universo não há senão uma quarta parte, segundo aprendeste da demonstração de Ptolomeu, que é habitada por seres vivos conhecidos por nós. Se dessa quarta parte subtraíres tudo quanto é coberto por mares e pântanos, e todas as vastas regiões de desertos áridos, descobrirás que foi deixado à habitação humana um espaço muito apertado. E pensas em anunciar tua fama e publicar teu nome nesse espaço, que não é senão um ponto dentro de outro ponto tão rigorosamente circunscrito?'"

terça-feira, 13 de julho de 2010

O grande jogo V

O segundo capítulo trata da complexa novela envolvendo os Estados Unidos, o Oriente Médio, Bush, a direita americana, o imperialismo, o islamismo e o terrorismo. Logo no início já se manifesta o horror de Magnoli pela direita americana e pelo Partido Republicano. O articulista sabe que há diferenças significativas entre republicanos e democratas. É verdade que ele crê erroneamente que essas diferenças são maiores hoje que nos tempos da Guerra Fria, mas a simples ciência dessa diferença já basta para colocar Magnoli acima de quase toda a esquerda brasileira.

Segundo o autor, Bush representa a síntese entre o neoconservadorismo e a "direita cristã". O primeiro grupo é composto de "intelectuais internacionalistas que reinterpretam a herança missionária da política externa americana num sentido unilateralista e imperial". A segunda é isolacionista e "guardiã fanática dos valores morais tradicionais". Sem dúvida, Magnoli tem alguma razão em contrapor as duas direitas. Mas as diferenças não o levam a gostar de nenhuma delas; ao contrário, é a semelhança que lhe repugna: "As duas faces da maioria republicana [...] distinguem-se em tudo, exceto na crença de que são portadoras de verdades absolutas". Mas que crime, não é mesmo?

Tem mais: segundo Magnoli, a América de Bush é avessa à Europa, patriótica, xenófoba e fundamentalista; acredita poder descrever a política na "linguagem do Bem e do Mal" e está em guerra cultural contra a modernidade. Traduzindo: a direita americana não é relativista em moral ou epistemologia; não simpatiza com os desvalores da modernidade, nem com a cultura irreligiosa da Europa, nem com os delírios dos globalistas; até se atrevem a ser cristãos em pleno século XXI. Infelizmente, não me parece que a verdade sobre a direita americana seja tão linda (ou horrível, conforme o ponto de vista) quanto Magnoli supõe. Mas, se eu fosse acreditar em Magnoli, passaria a venerar a direita americana.

sábado, 10 de julho de 2010

Um mundo com significado VIII

O sexto capítulo também fala muito de química, mas vai além, tratando também da estrutura fundamental das leis físicas da natureza. Trata ainda das implicações filosóficas e teológicas da cognoscibilidade da ordem natural, do princípio antrópico e do mito evolucionista de que, sendo a vida um fenômeno de fácil ocorrência, o universo deve estar cheio de seres alienígenas. São apresentados alguns argumentos interessantes sobre tudo isso, embora eu creia que um trabalho melhor poderia ter sido feito. Mas chamou-me a atenção de modo especial o tema fundamental do capítulo, que vem expresso já em seu título: Um lar cósmico projetado para o descobrimento. Num certo sentido trata-se do velho dilema proposto por Einstein: "O que há de mais incompreensível no universo é que ele é compreensível". Essa declaração não é mencionada no livro, talvez por um respeito indevido pela figura do famoso físico, mas a mim é inevitável a associação. Sempre penso que a cognoscibilidade do universo só pode ser considerada incompreensível num esquema filosófico materialista, ou então num monismo spinozista e semimaterialista como o de Einstein (escrevi sobre o pensamento religioso de Einstein aqui). O capítulo defende filosoficamente que o fato de a mente humana ser capaz de apreender as leis do universo indica a existência de um Criador. Porém, o texto vai além da pura defesa epistemológica, adentrando em uma porção de detalhes do empreendimento científico. Por exemplo, argumenta que a transparência da atmosfera terrestre a boa parte do espectro eletromagnético, assim como o fato de a radiação carregar informações sobre as condições físicas e químicas de sua fonte, indica que Deus desejava que estudássemos e compreendêssemos as estrelas e planetas. Isso me ocorreu pela primeira vez quando li Perelandra, o segundo volume da trilogia espacial de Lewis; ali, o protagonista visita um planeta todo coberto de nuvens espessas que tornam impossível a observação do céu, de modo que seus habitantes sequer tinham como suspeitar da existência de algo acima do firmamento. Agora, porém, percebo que Deus poderia perfeitamente ter disposto as leis da natureza de modo que jamais chegássemos a discernir alguma ordem por trás dos eventos cotidianos. E, no entanto, aprouve-Lhe manifestar sua glória permitindo que desvendássemos uma infinidade de segredos, do mundo subatômico aos agrupamentos de galáxias, passando pelos inextricáveis labirintos dos organismos vivos. A Ele, pois, toda a glória!

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O grande jogo IV

Ainda em conexão com o tema do post anterior, o internacionalismo e o governo mundial, há um trecho do oitavo capítulo que é muito útil na compreensão de um tema abordado já no primeiro. Magnoli nos conta sobre um relatório, desenvolvido por uma comissão da ONU, no qual são apresentadas propostas para viabilizar as metas de combate à pobreza assumidas pela Assembleia Geral em 2000. O relatório constatou o óbvio: a ajuda financeira dos países ricos não é condição suficiente para a elevação do desenvolvimento econômico dos países pobres, coisa que já sabíamos a partir do exemplo de Cuba, cuja população foi empobrecendo na medida em que uma imensa quantidade de dinheiro soviético ia entrando na conta dos governantes. No caso da África, a situação é mais ou menos a mesma, mas em escala ampliada. O relatório conclui que, seja por corrupção ou por incompetência, os países miseráveis não sabem administrar suas próprias economias, de modo que a ajuda financeira só deve ser dada a "países comprometidos com padrões de gestão e programas de reformas econômicas desenhados pelas instituições financeiras internacionais". Em outras palavras, como bem percebeu Magnoli, o Banco Mundial e as centenas de ONGs vinculadas à ONU dariam dinheiro aos governos africanos em troca da abdicação, na prática, de suas soberanias nacionais.

Esse é um exemplo vívido do alcance dos pretextos usados pelas forças políticas que trabalham em prol de um governo mundial unificado sob a égide da ONU. Em um artigo do primeiro capítulo, O campo de batalha do euro, embora sem tocar no assunto, Magnoli me deu razões para pensar que o mesmo projeto está por trás da unificação monetária da Europa Ocidental. Ele cita o historiador britânico Timothy Garton Ash, que, na aurora do euro, profetizava que a iniciativa dessa unificação dividiria a Europa ao invés de uni-la, dada a ausência de um poder político central capaz de ditar os rumos da política monetária. Magnoli explica: "a União Europeia não é um Estado nacional. Falta-lhe, portanto, a base de legitimidade política para forjar consensos". Mas eu me pergunto: os criadores do euro não sabiam disso? Não acho provável que grandes políticos de alguns dos países mais importantes do mundo ignorem tal obviedade. Por que, então, insistiram nesse projeto? A única resposta que consigo achar plausível é que eles pretendiam, desde o início, usar a unificação econômica como atalho para a unificação política, dando assim, quem sabe, uma forcinha adicional ao estabelecimento futuro do governo mundial.

domingo, 4 de julho de 2010

Desintoxicação sexual

Lembro que, alguns meses atrás, alguém pediu à Norma que discorresse sobre o tema da postura cristã sobre a sexualidade, em especial com relação à questão da masturbação. Na época eu ainda não conhecia o livro Desintoxicação sexual (Sexual detox), excelente trabalho de Tim Challies que trata deste e de outros assuntos relacionados às prescrições divinas para o sexo, sobretudo aos perigos da pornografia. Escrevendo numa linguagem simples, Challies é muito sensato e franco, e não foge das questões importantes que o tema impõe. O livro está disponível para download aqui, mas o pessoal do site iPródigo publicou uma boa tradução dividida em seis partes, como se vê abaixo:

1. "Pornificando" o leito conjugal: uma introdução que expõe a natureza do problema com a pornografia, com ênfase sobre o risco que oferece para a vida conjugal, presente ou futura.

2. Libertando-se: dicas sobre como começar a se libertar do pecado da pornografia, e bons motivos para fazer isso.

3. Uma teologia do sexo: uma exposição sobre o papel adequado do sexo num ser humano espiritualmente saudável, segundo o desígnio de Deus.

4. Sexo egocêntrico: uma breve análise do sexo pervertido. Fala sobre a masturbação, o egoísmo no sexo e a pureza da mente.

5. Desintoxicação: bons conselhos para quem já é casado ou pretende se casar. Combate algumas mentiras que o mundo nos conta sobre o sexo e fornece princípios gerais que devem nortear a conduta sexual de um casal.

6. Liberdade: alguns incentivos e encorajamentos bíblicos à santidade sexual.

Recomendo fortemente essa leitura não só aos que sofrem de alguma forma a tentação da impureza sexual, mas também a todos os que precisam ajudar alguém a superar esse problema. Na verdade, acredito que a leitura será proveitosa a todos os cristãos verdadeiros. Dificilmente haverá entre nós quem nunca precisou lidar com problemas dessa ordem, ou que não possa ser solicitado a ajudar alguém a qualquer momento.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O grande jogo III

O primeiro capítulo, Heranças da Guerra Fria, traz alguns textos dignos de comentário, os quais convergem em torno das questões do internacionalismo e do governo mundial. Já deixei claro o que penso sobre isso em meus comentários ao livro Nem Marx nem Jesus, de Revel. Mas Magnoli apresenta alguns elementos soltos que se encontram, no entanto, unidos por um fio comum.

Há um interessante artigo, Uma fronteira em movimento, no qual Magnoli discute as origens da Doutrina Truman, a estratégia americana de contenção do expansionismo soviético durante a Guerra Fria. O autor deixa no ar a sugestão de que o expansionismo soviético não se deveu ao comunismo, e sim ao nacionalismo dos russos, que "sentiam-se cercados e ameaçados pela hostilidade agressiva do Ocidente, e reagiam estabelecendo esferas de influência cada vez mais largas". Não duvido que a Rússia contenha um elemento expansionista não derivado da ideologia comunista, mas aqui se manifesta uma tendência que se estende por todo o livro: Magnoli jamais critica os inimigos da América (ou dos países ricos, ou do Ocidente em geral) sem sugerir, de modo explícito ou não, que ela tem culpa pelas ações de seus adversários. É um daqueles inconfundíveis cacoetes mentais da esquerda.

De qualquer modo, considero sem cabimento a negação do caráter expansionista do comunismo. Uma das divergências mais famosas entre Stálin e Trotsky reside justamente na acusação, feita pelo segundo ao primeiro, de arruinar o movimento comunista ao abrir mão de seu caráter internacionalista. E quase todos os comunistas que conheço estão do lado de Trotsky. Sem razão, porém, visto que, embora por vias incompreensíveis aos dissidentes internos do Partido, Stálin jamais deixou de praticar uma política expansionista. Isso se deu pela via militar, como na Europa Oriental, onde, após o fim da Segunda Guerra, as tropas soviéticas se mantiveram por muito tempo depois que os americanos abandonaram a metade ocidental do continente. E se deu também pela propaganda ideológica, inclusive nos Estados Unidos, desde os anos 20.

Além disso, não devemos esquecer que o comunismo é filho do iluminismo, que não só manifestou também sua tendência expansionista por meio das guerras napoleônicas, mas também idealizou o primeiro projeto de governo mundial, engendrado no cérebro de Immanuel Kant, como Magnoli nos faz lembrar em outra parte do mesmo capítulo. E, em todas as suas críticas ao imperialismo dos neoconservadores, o autor deixa de dizer que os ideais da política externa neoconservadora são devedoras justamente à teoria trotskista, da qual são uma espécie de versão democrática.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

The consolation of philosophy III

O Livro II consiste de um diálogo que está mais para monólogo, no qual a Filosofia discursa sobre a instabilidade da fortuna que acomete os homens, de modo que o homem só pode ser feliz de fato na medida em que coloca seu coração naquilo que é permanente e que independe do que lhe sucede. O texto parece, dessa forma, fazer uma aplicação cristianizada de certos princípios do estoicismo. No trecho abaixo, a Filosofia argumenta que nenhum homem pode alcançar a felicidade plena, mas que o sábio pode sempre encontrar motivos para a alegria autêntica. O final do trecho traz ecos da verdade bíblica de que todas as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus.

"Que felicidade está tão firmemente estabelecida que não enfrente altercações de lado algum para salvaguardar seu patrimônio? Pois a condição de nosso bem-estar é um assunto a ser cercado de cuidados: sua plenitude nunca aparece, ou então nunca permanece. A riqueza de um homem é abundante, mas seu nascimento e criação lhe causam vergonha. Um outro é famoso por sua origem nobre, mas prefereria ser desconhecido, pois sua vida é dificultada por seus recursos escassos. Um terceiro é abençoado com riqueza e boa criação, mas lamenta por sua vida porque não tem esposa. Outro é feliz em seu casamento, mas não tem filhos, e poupa sua riqueza para um herdeiro que não é seu filho. Outro é abençoado com filhos, mas derrama lágrimas de tristeza pelos erros de um filho ou de uma filha. Portanto, ninguém se encontra facilmente em paz com a sorte que a fortuna lhe reserva. Pois em cada caso há algo que é desconhecido para quem não o experimentou, mas que traz horror ao que o experimentou. Considera ainda que os sentimentos dos homens mais felizes são os mais facilmente afetados, já que, a menos que todos os seus desejos sejam satisfeitos, tais homens, sendo desacostumados a toda adversidade, são humilhados por toda pequena inquietação; muito pequenos são os problemas capazes de roubar-lhes a felicidade completa. Quantos julgas que são os que se considerariam elevados ao céu se a menor parte dos remanescentes de tua fortuna caísse sobre eles? Este mesmo lugar, que chamas de exílio, é o lar para aqueles que aqui vivem. Assim, nada é miserável a menos que o consideres assim; e, de modo semelhante, aquele que tudo suporta com uma mente calma acha sua sorte totalmente bendita."

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O grande jogo II

A apresentação, em quatro páginas, é de Fernando Henrique Cardoso. Por si mesmo, esse fato deixa entrever a tendência predominante da obra, que é a de um esquerdismo light. Alguns elementos chamaram minha atenção nos comentários do ex-presidente:

1. FHC afirma, referindo-se ao autor, que "seu estilo é ferino e sua linguagem, vez ou outra, pode soar abusada". Minha impressão foi o oposto exato disso. Mesmo quando faz as acusações mais graves - muitas vezes falsas, caluniosas e até absurdas -, Magnoli é a polidez em pessoa. Nosso ex-presidente parece possuir aquela mesma sensibilidade exacerbada às superficialidades que tomou conta da cultura brasileira.

2. Estranhamente, FHC atribui a Francis Fukuyama a tese de que "o fim do socialismo e da Guerra Fria [...] significou o fim da história". Não há dúvida de que isso é o que todo mundo diz. Mas eu confesso que esperava mais de nosso ex-presidente. Deixo aqui a breve advertência feita, a partir desse mesmo assunto, por Jean-François Revel em seu livro A obsessão antiamericana:

"Essa mundialização liberal, que triunfaria de forma clamorosa a partir de 1990, depois da desintegração dos comunismos, é o que Francis Fukuyama denominaria, no momento daquele colapso, 'o fim da história', expressão que quem reprovou não entendeu bem, pois muita gente acha, por desgraça, que leu um livro por ter lido seu título. Fukuyama não quer dizer que a história terminou, coisa absurda, e sim que a experiência refutou a concepção hegeliana e marxista da história, imaginada como um processo dialético que deve necessariamente acabar em um modelo final ao qual, supostamente, tendia a humanidade, sem saber disso e independentemente de sua ação, desde a origem dos tempos."

O mais curioso é que o próprio FHC menciona com desaprovação a concepção hegeliana e marxista da história, essa mesma que Fukuyama combateu. Dessa forma, fica sem sentido sua reprimenda a Fukuyama. Será que FHC não leu o livro?

3. FHC evidentemente endossa boa parte do conteúdo do livro. Dou destaque à apreensão quanto ao "preocupante ressurgimento do fundamentalismo de fundo religioso - o qual não é exclusivo do mundo muçulmano, senão que está presente também nas sociedades moldadas dentro da tradição judaico-cristã". Mas do que está ele falando? É necessário ler o livro para saber, mas já adianto: ele se refere a George W. Bush e aos conservadores americanos.

4. FHC diz que o ideário republicano foi "forjado na Revolução Francesa", como se os Estados Unidos já não tivessem uma república desde mais de uma década antes. Mas a Revolução Francesa é, segundo o ex-presidente, "uma das fontes ainda férteis do pensamento democrático de esquerda". FHC situa Magnoli nessa tradição e, com base nisso, enche-o de elogios. Esse é só um indício a mais de como anda a "direita" brasileira. Aliás, o próprio Magnoli não parece ter se dado conta disso, já que se refere a Lula como o primeiro presidente de esquerda do Brasil. Ele parece achar, então, que FHC é de direita. Péssimo começo.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Um mundo com significado VII

O capítulo 5 começa a entrar no tema do design na natureza: conta a história da descoberta dos elementos que compõem a tabela periódica - começando, porém, na Grécia antiga, com a discussão dos filósofos pré-socráticos sobre o elemento fundamental do mundo. Essa narrativa padece dos mesmos problemas que apontei nos capítulos 2 e 3: a falta de objetividade e precisão e a consequente impressão da falta, por parte dos autores, de conhecimentos aprofundados sobre o tema, denunciando um espírito excessivamente pragmático. Porém, todos esses efeitos se manifestam de modo bem menos intenso que nos capítulos iniciais, e a qualidade do livro está melhorando de modo notável. Além disso, para o leitor atento, a analogia entre os versos de Shakespeare e as propriedades dos elementos químicos é evidente, embora nem sempre enfatizada devidamente: a semelhança reside na ordem que se revela em níveis diversos, produzindo um conjunto harmonioso cuja beleza é irresistível, uma vez descoberta. O capítulo também é interessante, apesar do popularismo, como introdução à história da química e suas ancestrais remotas: a metalurgia, a filosofia e a alquimia. Eu recomendaria esse texto como leitura inicial sobre o assunto a um leitor não-iniciado no idioma sagrado da ciência. Eu mesmo aprendi alguns detalhes interessantes, como que a mineração, a metalurgia e a cerâmica tiveram início por razões muito mais estéticas que propriamente utilitárias, segundo o historiador Cyril Stanley Smith.

sábado, 19 de junho de 2010

O grande jogo

Tendo terminado de ler o Diário de viagem, de Albert Camus, dei início à leitura de um outro livro que ganhei na virada de ano. Desta vez, o presente veio da Cléo, minha cunhada. O livro, lançado em 2006, é O grande jogo: política, cultura e ideias em tempo de barbárie, e seu autor é o cientista social e geógrafo Demétrio Magnoli. Concluí a leitura em fevereiro, e só depois dei início à redação dos posts. O livro não tem muita continuidade; consiste de muitos artigos curtos (contei 134) organizados segundo seus temas fundamentais em treze capítulos. Podemos, com boa aproximação, considerar que os oito primeiros tratam de política internacional, e os restantes versam sobre política brasileira. Os artigos são versões atualizadas de textos publicados entre 2001 e 2005 nos jornais Folha de São Paulo e Valor, bem como nas revistas Época e Mundo - geografia e política internacional. O objetivo do livro é lançar alguma luz sobre a situação conturbada que se instalou desde a dissolução da URSS e a queda do Muro de Berlim. Tenho muitos e severos desacordos quanto aos posicionamentos do autor, mas foi uma leitura proveitosa por enriquecer meus conhecimentos em diversos pontos, e também pelo estilo agradável que caracteriza a prosa do autor.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Diário de viagem III

Publiquei em meu blog o terceiro post sobre esse livro, contendo trechos interessantes da parte final da viagem de Albert Camus à América do Sul.

domingo, 13 de junho de 2010

LXX versus TM

Li em 2002 um livro de Gleason L. Archer Jr. chamado Merece confiança o Antigo Testamento?, cujo título original é menos apologético: A survey of Old Testament Introduction. A versão revista dessa obra foi publicada em 1974, dez anos depois da original. No terceiro dos 27 capítulos, intitulado Os manuscritos hebraicos e as versões antigas, há o seguinte comentário sobre a Septuaginta:

"A LXX tem grandes diferenças de qualidade e de valor, de um livro para outro. O Pentateuco foi traduzido com maior exatidão, de modo geral, que os demais livros do Antigo Testamento, indubitavelmente porque tinha de servir como um tipo de Targum grego nos cultos realizados nas sinagogas das congregações judaicas no Egito. Os Profetas Anteriores (i.e., de Josué até 2 Reis) e os Salmos são traduzidos com considerável fidelidade ao original hebraico, de modo geral. No caso dos Profetas Posteriores (Isaías até Malaquias), a tendência à paráfrase é mais definida, e as passagens hebraicas mais difíceis muitas vezes recebem um tratamento inexperiente. Os demais livros, os Poéticos (sem incluir os Salmos) demonstram uma tendência semelhante à liberdade na interpretação."

No capítulo seguinte, Archer endossa a metodologia proposta por Ernst Würthwein, que declara, dentre outras coisas, que, em caso de conflito insolúvel entre o Texto Massorético e outras versões, o benefício da dúvida deve ser concedido a ele.

No ano passado, porém, li um livro que traz uma descrição diferente do valor da Septuaginta. Trata-se do Old Testament exegesis: a primer for students and pastors, de Douglas Stuart, publicado originalmente em 1980 (estou informado de que o livro foi traduzido e publicado no Brasil, mas o exemplar a que tive acesso estava em inglês mesmo). Vejamos o que ele diz sobre a Septuaginta em seu último capítulo Exegesis aids and resources (a tradução é minha):

"Essa versão representa uma tradução do hebraico que começou a ser feita no século III a.C.. Sua importância não pode ser minimizada. Em média, ela é uma testemunha tão confiável e exata do palavreado original do Antigo Testamento (os 'autógrafos') quanto o Texto Massorético. Em muitas seções do Antigo Testamento, ela é mais confiável que o Texto Massorético; em outras, menos. Em larga medida porque a língua grega usa vogais e a hebraica não, o palavreado da LXX era menos ambíguo e a LXX tinha, por natureza, menor probabilidade de ser distorcida por corrupções textuais que a versão hebraica, que foi acumulando corrupções (assim como expansões editoriais, etc.) por muitos séculos depois que a LXX foi produzida."

Portanto, se bem os entendi, Archer confia no valor da Septuaginta muito menos que Stuart, especialmente em comparação com o Texto Massorético. E agora? Quem tem razão?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Diário de viagem II

Como fiz no post anterior, também transcrevi em meu blog, com poucos comentários pessoais, alguns trechos interessantes da visita de Camus ao Brasil. Por ter sido narrada com mais detalhes, porém, esse post será complementado por um outro, num futuro próximo.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Um mundo com significado VI

Desde os meus quinze anos, mais ou menos, tenho andado um pouco frustrado por não conhecer a demonstração do teorema de Pitágoras. Não, porém, frustrado o suficiente para ir procurar por ela. O quarto capítulo do livro em questão, no entanto, traz uma demonstração simples e bela, que é a inventada pelo próprio Euclides. Tão simples e bela que não entendo por qual motivo nunca me foi ensinada na escola. Mas não importa. Agora sou uma pessoa um pouco mais feliz que antes. Mesmo que o livro não tivesse outros aspectos interessantes, sua leitura já teria valido a pena só por isso.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Diário de viagem

Ganhei da Norma, no último Natal, esse livro de cerca de 150 páginas. É de autoria do célebre escritor francês Albert Camus. Publiquei no outro blog os trechos que julguei mais interessantes da primeira parte do livro, em que o autor narra sua viagem pelos Estados Unidos e pelo Canadá, realizada em 1946. Fiz também alguns comentários a respeito; poucos, pois Camus é um escritor suficientemente bom para que valha a pena deixá-lo falar por si mesmo.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Nem Marx nem Jesus XVI

Enfim concluí a leitura do livro, e escrevo agora para resumir minhas impressões. O livro foi suficientemente instigante para merecer dezesseis posts, incluindo três mais longos que acabaram indo para meu outro blog. Isso é particularmente notável, já que a política ocupa, em minha lista de interesses, uma posição muito abaixo da teologia, da filosofia, da literatura, da história e da ciência, por exemplo.

De modo geral, o livro satisfez a expectativa produzida em minha mente pela leitura dos comentários iniciais de Mary McCarthy e a resposta do próprio Revel. No final do primeiro post sobre o livro, escrevi:

"Tenho uma impressão preliminar de que, embora seja provável que ele confundirá algumas coisas, considerando bons alguns fatos que são ruins e vice-versa, a essência do que ele diz é correto e pertinente: parece que a maior parte das grandes transformações que têm conquistado o mundo vem dos Estados Unidos. E isso inclui as boas, as ruins, as boas que muitos consideram ruins e as ruins que muitos consideram boas."

Agora, porém, posso ser mais preciso. Revel nutria uma admiração lamentável pela esquerda americana, atribuindo a ela muitos dos méritos que na verdade pertencem à oposição conservadora, e possuindo sobre o movimento conservador a mesma opinião flagrantemente falsa sustentada pela esquerda no mundo todo. Em particular, ele considerou a esquerda americana amiga das liberdades, e os conservadores como censores. Eu gostaria de saber o que ele diria hoje, quando a inversão da realidade contida nessa opinião se tornou muito mais patente. Tenho esperança de que, depois de 1970, Revel tenha modificado suas posições quanto ao conservadorismo e a esquerda americana, pois ele me pareceu sensato e bem informado demais para continuar ignorando a verdade por mais 36 anos (pois Revel morreu em 2006).

Não devo encerrar sem um breve esclarecimento sobre o título do livro, cuja razão de ser permaneceu enigmática até o último capítulo, que traz o mesmo nome. Na verdade, o título não é explicado diretamente em parte alguma, mas creio que se refere ao rumo que Revel cria (ou pelo menos esperava) que seria tomado pelo mundo, seguindo a iniciativa e a liderança dos Estados Unidos. O filósofo francês procura demonstrar que as possibilidades que se abrem nesse país não se enquadram nos esquemas precedentes já vividos ou tentados pela humanidade: ali não há um conservadorismo capitalista solidamente instalado sem contestação séria, e tampouco há um espírito revolucionário ditado pelas categorias ultrapassadas do século XIX. Jesus e Marx simbolizam e personificam essas duas tendências, que são os dois únicos polos captáveis pela mente esquerdista tradicional, incapaz de conceber algo fundamentalmente distinto de ambas. Eis a razão pela qual ninguém na Europa Ocidental dos anos 60 conseguia entender direito o que realmente se passava na América. E foi a fim de esclarecer isso que Revel escreveu o livro.

Para encerrar, acrescento que eu recomendaria a leitura desse livro a um esquerdista: embora seja também esquerdista, Revel pode ser muito salutar para uma cabeça intoxicada de marxismo.

sábado, 29 de maio de 2010

Um mundo com significado V

O trecho abaixo exprime bem o que me parece ser o principal efeito nocivo da matematização das ciências, algo que muito raramente é enfatizado pelos historiadores e filósofos da ciência, segundo tenho visto até aqui. O livro não tem referências bibliográficas, mas não posso deixar de notar uma semelhança considerável entre o que é dito aqui e a abordagem de George Steiner sobre o mesmo tema. Deste último jamais li coisa alguma, mas tomei conhecimento de suas reflexões sobre o assunto - que me pareceram, aliás, muito interessantes - graças ao meu amigo Gustavo, que resumiu bem a questão neste curto e bem escrito post, cuja leitura recomendo aos interessados.

"Darwin viu outra coisa na natureza, diferente dos campos de belos narcisos nos prados, de William Wordsworth - uma filha morta e a natureza 'rubra em presas e garras'. Não há Deus presente, ele presumiu, a não ser o deus da necessidade, uma lei fixa e elegante. Seus seguidores iriam ainda mais longe, submetendo as belezas selvagens do mundo vivo à chancela da rubrica matemática: fazendo, a todo custo, que a natureza se encaixasse na ordem matemática, reduzindo-a totalmente a números, probabilidades, taxas de mutação. Adornaram-na com vagas referências à complexidade e à teoria do caos - conversas infindáveis sobre tudo, menos sobre o organismo vivo que respira.

Para entender o que deu errado, teremos de voltar às palavras de Galileu - o pressuposto de que a matemática (para ele, principalmente a geometria de Euclides) seja tão maravilhosamente efetiva que sem sua 'linguagem [...] será impossível compreender sequer um de seus termos; sem seu auxílio, vaguear-se-á sem rumo por um escuro labirinto'. Aqui, o astrônomo e físico - maravilhado com as regularidades matemáticas que havia descoberto - permitiu que lhe fugisse a retórica. Expressou o assombroso entendimento de que a matemática é uma ferramenta efetiva para discernir a ordem da natureza, mas não é o caso de a natureza ser incompreensível sem a matemática. Esse ponto de vista, mais tarde, levou seus seguidores a crer que aquilo que não pode se resumir a expressões matemáticas não existe ou é apenas uma projeção 'subjetiva' de natureza essencialmente matemática. Em tal ponto de vista, a única linguagem significativa seria a da matemática, mas, porque nossa experiência e linguagem diárias não são governadas pela matemática, não estariam significativamente relacionadas com a realidade. Como resultado, reflexões profundas baseadas em nossa linguagem e experiência cotidianas são tidas como sem fundamento. Fora com Shakespeare, Aristóteles, Tomás de Aquino e todo e qualquer dramaturgo, filósofo ou teólogo que não fale a língua dos matemáticos! Vivam os matematicos, químicos e físicos e, depois deles, diversos agregados, cientistas sociais e psiquiatras!"

Adendo: o Gustavo também escreveu outros dois curtos e interessantes posts sobre Steiner e suas ideias: este e este outro. O amigo mencionado no primeiro sou eu.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Nem Marx nem Jesus XV

No trecho abaixo, Revel traz informações estarrecedoras sobre o lado podre da América - ou, pelo menos, um dos lados mais notoriamente podres. Essa é uma boa amostra do poder de que dispunha a esquerda radical americana já nos anos 60 - apoiada, ironicamente, por um bando de ricaços que, a julgar pela teoria marxista, seriam os principais interessados em combatê-la. No caso em questão, trata-se dos Panteras Negras, grupo devotado ao terrorismo como meio de luta contra a discriminação dos negros. O trecho mostra também o quanto a situação real do embate político americano foi distorcida pela imprensa europeia, somando assim um exemplo a mais à infindável lista de modos pelos quais os revolucionários se aproveitam dos crimes de seus próprios comparsas para caluniar seus adversários. Algo que já estamos cansados de ver aqui nesta parte do mundo... Fiquei com a impressão de que Revel era não só honesto demais para aderir à ampla campanha de difamação antiamericana empreendida pelos governos e partidos comunistas em todo o mundo (inclusive nos Estados Unidos), mas também ingênuo demais para sequer suspeitar que, por trás de tantas mentiras e distorções divulgadas pela imprensa francesa sobre a grande potência do Ocidente, pudesse haver algo além da mera burrice.

"Os Panteras Negras são extremistas que, em todos os seus programas, afirmam abertamente a intenção de praticar atentados e assassinatos políticos. De um ponto de vista revolucionário, pode-se aprovar ou não sua ação; mas, do ponto de vista do Direito, qualquer que seja a sociedade, é puro delírio qualificar de 'fascista' o fato de eles serem inculpados, pois pergunto, então, em que regime colocar bombas nos edifícios públicos não seria objeto de algum processo. Os revolucionários americanos encontram-se, de fato, numa posição ideal: beneficiam-se de todas as vantagens do sistema cujos inconvenientes denunciam... É a situação do rendimento revolucionário máximo, nomeadamente no plano da propaganda. Os efeitos, aliás, estão à vista: os Panteras desfrutam de vasta simpatia no seio do Establishment. Um dos mais célebres maestros do mundo deu, em janeiro de 1970, em seu apartamento de Nova York, uma recepção em honra aos chefes do movimento à qual compareceram personagens não menos célebres das letras, das artes e da política. Um relatório do F.B.I., em julho, deplorou que os Panteras recebam importantes fundos de ilustres doadores, grandes nomes dos Estados Unidos. Quanto ao processo dos 'Sete de Chicago', inculpados depois dos motins desencadeados por ocasião da Convenção Democrata de 1968, na Europa destacou-se sobretudo a extraordinária chuva de sanções por ofensas à magistratura que se abateu, durante as audiências, sobre acusados e advogados. Mas esquecem-se de que estes últimos adotaram a tática deliberada de recorrer sistematicamente à provocação, tratando o presidente do tribunal, Julius Hoffmann, por 'Juliette', despindo-se na pretoria, ganindo, miando e exigindo que se retirasse da parede e levasse da sala das sessões o retrato de Washington, 'esse traficante de escravos'. A tática tinha, talvez, aspectos positivos, mas não se vê o que poderia fazer o presidente senão aplicar sanções por 'ofensas à magistratura', o que, aliás, não o impediu de ser tratado como louco paranóico por largos setores da imprensa americana. Perguntaram os juristas o que fazer em tal caso. Julgar os acusados na sua ausência? Impossível, legalmente. Colocá-los numa cabine de vidro à prova de som? Difícil, tecnicamente. Como troça a esta última sugestão, um acusado se fez fotografar, por escárnio, com uma mordaça na boca e um cartaz: 'No futuro, é assim que se será julgado nos Estados Unidos', e a fotografia foi reproduzida num jornal europeu como ilustrando uma medida preconizada, assim se escrevia, pelo ministério público! Em resumo, os acusados foram absolvidos pelo júri da acusação de terem 'transposto a fronteira de um estado com a intenção de ali fomentar desordens', segundo o texto da lei que a acusação ali desejaria ver aplicada. Cinco foram condenados por agressões e ferimentos e libertados sob fiança - paga por 'generosos doadores'."

domingo, 23 de maio de 2010

The consolation of philosophy II

Ainda no Livro I, começam a aparecer lições interessantes. Após queixar-se abundantemente de sua sorte, o narrador eleva a Deus esta bela oração:

"Ó Fundador do universo cravejado de estrelas, assentado em Teu eterno trono, donde giras o céu, que rola com rapidez, e obrigas as estrelas a seguir Tua lei; por Tua palavra a lua agora brilha vivamente em toda a sua face, sempre voltada para a luz de seu irmão, e assim obscurece as luzes menores; ou agora está ela própria obscurecida, pois perto do sol seus feixes mostram apenas seus pálidos chifres. Fria sobe a Estrela da Tarde junto ao primeiro esboço da noite: é a mesma a Estrela da Manhã, que abandona a armadura que usara antes e, pálida, encontra o sol ascendente. Quando o frio do inverno desnuda as árvores, estabeleces uma duração mais curta ao dia. E, quando o verão esquenta, alteras as curtas divisões da noite. Teu poder ordena as estações do ano, de modo que a brisa ocidental da primavera traga de volta as folhas que o vento setentrional do inverno levou embora; de modo que a Estrela do Cão amadureça as espigas de milho cuja semeadura Arcturus observara. Nada quebra essa antiga lei; nada deixa por fazer o trabalho designado para si. Assim, governas todas as coisas com limites fixados; apenas as vidas dos homens recusas-te a refrear, como um guardião, impondo limites. Pois por que a Fortuna, com sua mão inconstante, distribui sortes tão mutáveis? A pena dolorosa é o pagamento pelo crime, mas recai sobre a cabeça sem pecado; homens depravados repousam em paz sobre altos tronos, e por sua sorte injusta podem esmagar sob seus perniciosos calcanhares os pescoços de homens virtuosos. Sob sombras obscuras jaz oculta a brilhante virtude; o homem justo suporta a infâmia do injusto. Eles não sofrem com juramentos falsos, não sofrem com crimes minimizados por suas mentiras. Mas quando seu desejo é aumentar sua força, eles com triunfo subjugam os mais poderosos reis, a quem temem os milhares do povo. Ó Tu que apertas os laços da Natureza, olha para baixo, para esta terra miserável! A raça humana é a parte vil dessa grande obra, e somos agitados pela onda da Fortuna. Dá repouso à tempestade, ó nosso Guardião, que a tudo inunda e, assim como governas o céu ilimitado, com laços semelhantes torna verazes e firmes estas terras."

Pouco depois, a Filosofia lhe dá uma bela bronca por ter falado desse modo contra a soberania de Deus. Todos já vimos isso em algum lugar:

"Então ela disse:
'Pensas que este universo é guiado apenas a esmo e por mero acaso? Ou pensas que há algum governo racional constituído nele?' 'Não, eu jamais pensaria que pode ser assim, nem creria que tão certos movimentos poderiam ser feitos a esmo ou por acaso. Sei que Deus, o Fundador do universo, supervisiona sua obra; não poderá jamais chegar um dia que me levará a abandonar essa crença como falsa.' 'Assim é', disse ela, 'e no entanto choraste agora mesmo, e só lamentaste que apenas a humanidade não tem parte nessa tutela divina; estavas firme em tua crença de que todas as demais coisas são governadas pela razão. Quão estranho! Como eu gostaria de saber como é que você se tornou tão doente, embora estejas firme num estado mental tão saudável!'"

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Nem Marx nem Jesus XIV

O livro traz um capítulo intitulado Antiamericanismo e a revolução americana, dedicado, creio eu, ao mesmo assunto que, vinte e poucos anos mais tarde, resultaria num livro inteiro escrito pelo mesmo autor. O trecho que transcrevo a seguir capta bem o espírito de toda essa parte do livro, que denuncia nos esquerdistas franceses o erro de, preocupados em coar o mosquito americano, engolir repetidamente o camelo europeu. O assunto em questão é o antissemitismo. Revel narra aqui uma conversa que teve com "uma romancista de extrema-esquerda" pouco tempo depois de ter retornado de uma viagem aos Estados Unidos.

"[Ela] me perguntou em tom imperativo (a resposta não poderia deixar de ser afirmativa, na sua opinião) se persistia o antissemitismo de sempre na América. Respondi que, com efeito, sabia desde muito existir certa discriminação em vários clubes e até nalguns restaurantes, mas que nunca tivera ocasião, durante as minhas estadas, de verificar diretamente esse fenômeno. Ela contra-atacou vigorosamente, oferecendo-se para me dar uma lista de vinte ou trinta restaurantes de Nova York onde os pedidos de reservas de mesas feitos pelos que têm sobrenomes judaicos eram, dizia ela, recusados. Curvei a cabeça, retorquindo que isso era possível, embora eu não o houvesse notado. Ficamos nisso, e foi só mais tarde que me invadiu a sensação do descaramento que havia, da parte duma francesa, em fazer tais afirmações. Pois, afinal, qual a razão por que existem atualmente seis milhões de judeus na América do Norte? Apenas porque eles, ou seus pais e avós, foram expulsos da Europa pelas perseguições que lhes moveram e porque houve pogroms na Rússia, no princípio do século, na Hungria, na Romênia e na Polônia! Somente por terem existido Hitler e as leis raciais de Vichy, que fizeram grande investida contra os judeus franceses! No momento mesmo em que essa senhora me 'bicava', surgiam de novo, na França, estranhos delírios coletivos - o 'boato de Orleans', o 'boato de Amiens'; nessas cidades corria o boato de que, em lojas judias, mulheres sumiam por alçapões, tão logo entravam. A Europa bárbara, sanguinária, policial, fanática e mesquinha havia desde sempre praticado incansavelmente o antissemitismo, de todas as modalidades, da perseguição ao genocídio organizado; ela chegara, nesse campo, à verdadeira apoteose, no século mesmo em que vivemos: matara, apenas no decorrer da Segunda Guerra Mundial, quase o dobro de quantos judeus existem atualmente na América do Norte (se se acrescentarem às vitimas dos campos de morte alemães as que foram chacinadas no resto da Europa). E eu tinha ainda de ouvir uma europeia, uma francesa, fazer a acusação do antissemitismo na América, a propósito de histórias de mesas de restaurante!"

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Esses livres-pensadores são engraçados (II)

Collins escreveu uma obra anticlerical e de tons panteístas. Na Enciclopédia do protestantismo, ainda leio, em continuação ao parágrafo do post anterior:

…a obra Answer to Mr. Clarke’s Third Defence of His Letter to Mr. Dodwell (Londres, Darby, 1711) deixa entrever que, assim como Toland, Collins crê na matéria eterna e incriada.

Entendo. Quer dizer que, para Collins, precisamos urgentemente de liberdade em relação a um Deus eterno, pessoal, bondoso, gracioso e imutável, que sacrificou Seu Filho por nós, enquanto não há problema algum em ser escravo de uma pobre matéria eterna e incriada?

Esses livres-pensadores são mesmo muito engraçados!

Esses livres-pensadores são engraçados (I)

Leio na Enciclopédia do protestantismo (a sair pela editora Hagnos) esse trecho sobre Anthony Collins (1676-1729):

Em Discourse of Free Thinking [Discurso sobre a liberdade de pensamento] (1713, Londres, 1714), a ênfase de Anthony Collins não é tanto os fundamentos do livre-pensamento, no sentido estrito da expressão, mas sim do pensamento livre, baseando-se portanto na única razão da ausência de qualquer tipo de autoridade exterior. No entanto, sua defesa e sua ilustração da liberdade de pensamento não excluem a convicção de que o determinismo é universal.

Em outras palavras, Collins reclama para si e para a humanidade o direito de pensar livremente que, no mundo, ninguém pensa nem faz nada livremente.

Esses livres-pensadores são engraçados!

domingo, 16 de maio de 2010

História da mentalidade científica

Nesta postagem vou apenas listar alguns trabalhos valiosos para quem se interessa pelas origens da mentalidade científica moderna, ou seja, pelos elementos filosóficos e teológicos que, para o bem ou para o mal, exerceram influência decisiva sobre os grandes cientistas e sobre a comunidade científica em geral. A lista a seguir não está em ordem de importância, e sim na ordem em que os li. Ficarei muito agradecido se o leitor que porventura conheça outros trabalhos relevantes puder compartilhar suas sugestões comigo.

1. Christianity and the birth of science, de Michael Bumbulis: tenho vários desacordos quanto às posturas do autor (ele é evolucionista, por exemplo), mas esse longo artigo é valioso por suas informações sobre a influência da escolástica posterior e sua visão sobre a conturbada relação atual entre a ciência e a pós-modernidade.

2. De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica, de Pierre Thuillier: uma interessante coleção de ensaios sobre diversos elementos que resultaram em ideias científicas influentes, presentes, por exemplo, na arte renascentista ou nas posições teológicas de Darwin e Einstein.

3. A Revolução Copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental, de Thomas Kuhn: o título explica a si mesmo. A despeito de equívocos quanto a certos detalhes, o livro é excelente pela abrangência e pelo tratamento não-amadorístico das questões técnicas da astronomia antiga e sua importância nos debates científicos e filosóficos dos séculos XVI e XVII. Kuhn nos apresenta aqui um ótimo exemplo histórico dos princípios gerais enunciados em seu clássico A estrutura das revoluções científicas.

4. A revolução científica e as origens da ciência moderna, de John Henry: esse pequeno livro traz uma excelente introdução ao assunto, descrevendo as principais questões atualmente debatidas pelos historiadores da ciência e fornecendo uma extensa bibliografia para os interessados em um aprofundamento.

5. Physical science in the Middle Ages, de Edward Grant: uma excelente exposição de como os pensadores da escolástica posterior anteciparam vários dos princípios da ciência pós-Galileu e, ao mesmo tempo, não romperam com a tradição científica aristotélica nos pontos essenciais.

6. Do mundo fechado ao universo infinito, de Alexandre Koyré: livro cheio de insights maravilhosos e muito bem escrito sobre a evolução do conceito de espaço em sua relação com a ciência moderna e com os sistemas metafísicos racionalistas, empiristas, neoplatônicos e neopagãos.

7. The fractal geometry of nature, de Benoît Mandelbrot: livro já bastante comentado neste blog, e cujo propósito fundamental não é histórico. Apesar disso, Mandelbrot fornece muitas pistas interessantes sobre a história da relação entre as ciências naturais e a matemática. No contexto da presente postagem, o livro tem seu valor incrementado pelo fato de que o próprio autor foi um matemático que deu enormes contribuições no campo pioneiro da geometria dos fractais, e nesse livro ele nos dá várias indicações sobre a origem de suas ideias. Trata-se, pois, da rara oportunidade de observar um gênio em ação.